Poeta, cantor e compositor, José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, nascido a 2 de Agosto de 1929, em Aveiro, e falecido em 1987, foi estudante na Faculdade de Letras de Coimbra, tornando-se notado pelas suas interpretações do fado típico daquela cidade, não apenas pela qualidade da sua voz mas desde logo pela originalidade que emprestava às suas interpretações. A sua formação musical integra um processo global de actualização temática e musical da canção e fado de Coimbra. É assim que o cancioneiro de Zeca Afonso recria temas folclóricos e até infantis, reescrevendo formas tradicionais como a "Canção de Embalar", evocando mesmo, neste retomar das mais puras raízes culturais portuguesas, o ambiente lírico dos cancioneiros primitivos (cf. "Cantiga do Monte"), ao mesmo tempo que introduz no texto temas resultantes de um compromisso histórico, denunciando situações de miséria social e moral (os meninos pobres, a fome no Alentejo, a ausência de liberdade) e cimentando a crença numa utopia concentrada no anseio de "Um novo dia" ("Menino do Bairro Negro"). Reagindo contra a inutilidade do "cantar o cor-de-rosa e o bonitinho, muito em voga nas nossas composições radiofónicas e no nosso music-hall de exportação", parte da convicção de que "Se lhe déssemos uma certa dignidade e lhe atribuíssemos, pela urgência dos temas tratados, um mínimo de valor educativo, conseguiríamos talvez fabricar um novo tipo de canção cuja actualização poderia repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência adormecida em vez de o distrair." ("Notas" de José Afonso in Cantares, p. 82). Canções decoradas por várias gerações de portugueses, filhas da tradição e incorporando elas por seu turno a tradição cultural portuguesa, a maior parte dos temas de Zeca Afonso integram, como voz de resistência, mas também como voz pura brotando das raízes do ser português, o imaginário de um povo que durante a ditadura decorou e entoou intimamente os versos de revolta de "Vampiros" ou de "A Morte Saiu à Rua", ou que fez de "Grândola, Vila Morena" o seu hino de utopia e libertação. Menos equívoca, no pós-25 de Abril, mas animada pelo mesmo ímpeto de reivindicação de justiça e de apelo à fraternidade, a sua canção, no que perde por vezes de subtil metaforização imposta pela escrita sob censura, ganha em força e engagement, na batalha contra novos fantasmas da alienação humana como o imperialismo, a CIA, o fascismo brasileiro, o novo colonialismo de África, o individualismo europeu. Neste alento, as Quadras Populares (1980) constituem uma verdadeira miscelânea sobre os novos desconcertos do mundo, as suas novas e renovadas formas de opressão, enumerando uma por uma as iniquidades, disparates e esperanças frustradas da sociedade saída da revolução de Abril, aspirando, em conclusão, a uma revolução ainda não cumprida ou ainda por fazer. Apesar de galardoado por três vezes consecutivas (1969, 1970 e 1971) com um prémio oficial, a sua produção viria a ser banida dos meios de comunicação, dado o seu conteúdo indesejável para o regime; por essa mesma ordem de razões (talvez mais do que pela inovação musical), a sua popularidade viria a crescer após a reimplantação da democracia.
© 2004 Porto Editora, Lda.
1 comentário:
Boa pesquisa Rui.
O Zeca merecia-o.
A sua "Balada de Outono" profetizava a certeza que todos temos.
...
rios que vão para o mar
deixem meus olhos secar
águas das fontes calai
ó ribeiras chorai
que eu não volto a cantar
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