Breves memórias pessoais do 25 de Abril
De Abril recordo o clima de amizade, de liberdade e de solidariedade que reinou. Os dois primeiros 1º de Maio em Liberdade.
Toda a gente a correr para as televisões e telefonias na hora dos noticiários. Milhares e milhares de pessoas presas aos televisores a ouvirem contar os episódios da luta contra o fascismo. As edições dos jornais a esgotarem-se e com segundas edições.
Fundámos milhares de clubes, associações, bibliotecas e cooperativas de consumo, de habitação: construímos as bases de uma nova sociedade.
Lembro essa coisa maravilhosa, que aos poucos desapareceu, da boa educação de toda a gente, como se toda a vida se tivessem levantado para ceder o lugar nos transportes públicos – “Faça favor!”, “Oh, deixe estar, não era preciso…”
Lembro as lágrimas nos olhos de muitos quando as campanhas de fundos de apoio à Reforma Agrária resultaram na aquisição de tractores e alfaias usadas para vencermos a batalha da produção.
Lembro com saudade o dia de trabalho voluntário num feriado como resposta à sabotagem económica.
Lembro as muitas horas de discussão apaixonada em grupos, onde uma conclusão ressaltava: Portugal tinha de mudar para melhor, tínhamos de construir um País mais justo e com mais igualdade.
Lembro que falávamos não só da primeira geração de direitos e da liberdade, mas também da segunda geração de direitos do trabalho do emprego, e de uma terceira geração de direitos dos consumidores, da cultura e do ambiente – e hoje fala-se na precariedade no trabalho, na polivalência, no retrocesso funcional, na desigualdade, na pobreza, na iliteracia e analfabetismo funcional, do degelo, da agonia do planeta...
Lembro a adesão maciça ao Programa de MFA baseado nos três D: Desenvolvimento, Descolonização e Democracia.
Lembro-me de pensarmos que dali até ao Socialismo, consagrado na Constituição de Abril, era um pulo.
E afinal não foi! Aquilo que parecia ser já ali mostrou-se mais distante.
Lembro os mil e um meandros em que o rio de Abril perdeu o seu ímpeto inicial e alterou o seu curso.
Lembro que pela primeira vez na história do país, na distribuição da riqueza, os que trabalham ficaram com a maior parte – hoje, na distribuição da riqueza, estamos a níveis piores do que antes do 25 de Abril.
Lembro, com comoção, um Primeiro-ministro cuja primeira medida foi baixar o seu vencimento e o dos Ministros – e agora... escândalos sucessivos associados à corrupção e os «tachos» para os amigos.
Lembro que lutamos há 35 anos pela Dignificação e Justiça Social, coisa que parecia ter sido conquistada de forma consolidada e perene.
Mas lembro também os sobreviventes do Campo de Morte Lenta do Tarrafal e de todas as outras prisões onde os antifascistas consequentes passaram séculos das suas gloriosas vidas; dos que foram assassinados e que dão outro sentido à luta e a certeza de que vale a pena lutar. E ressalta, pelo seu exemplo, que quem luta pode perder, mas quem não luta já perdeu.
Abril Vencerá!
Construiremos o Portugal que sonhámos em Abril resistindo e desbravando o caminho.
Julgávamos que a revolução era feita num dia e, no outro, tudo estaria resolvido. Empolgados com a construção de um Portugal melhor e mais justo, esquecêramos que a Revolução é um processo prolongado, com avanços e recuos, e que tudo se transforma continuamente.
O universo expande-se e arrefece. A Terra, a nossa Terra, a nossa casa cósmica, é uma realidade em constante mutação: todos os dias muitos milhares de toneladas de rocha transformam-se em magma e toneladas de magma transformam-se em rocha; os continentes movem-se como gigantescas jangadas de pedra.
A história do homem corre por meandros que por vezes nos dão a ilusão de estar a recuar, mas continua a avançar sempre em direcção ao Mar do Futuro, moldado pelo querer do homem e da natureza.
As sociedades sofrem mutações constantes, dando azo a novas relações económicas e sociais que tendem a moldá-las em novos e mutáveis pontos de equilíbrio.
No horizonte de Abril há mais estabilidade, mais justiça na distribuição da riqueza, mais igualdade de oportunidades e mais dignidade na condição humana e profissional; mais democracia abrangendo todas as vertentes da vida do homem: social, económica, política e cultural.
Porque o sonho não morre e o homem quer, o futuro do Portugal d’Abril será o que construirmos.
E nós, os portugueses, somos bons construtores!
David’ Pereira
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