Divisa de 1.º Sargento Electrotécnico de Marinha (Curso de 3 anos)
A vez do movimento dos sargentos
Quando se fala em contestação nas fileiras, as atenções viram-se eles. Breve retrato de uma categoria de militares.
No 10 de Junho, vou estar presente no desfile, em Faro», garante o sargento-mor na reserva José Santos Gomes. E essa é uma promessa para valer. Nem que apertem as dores nas cruzes, que atribui aos incontáveis quilómetros percorridos dentro de carros de combate, durante os 35 anos de serviço no Exército. E aparecerá todo aperaltado: de farda n.º 1, botas altas e pingalim. E, claro, de costas direitas, não fosse ele um dos decanos de uma classe que se considera a coluna vertebral das Forças Armadas (FA).
Passarinho (é essa a sua alcunha pela qual quase todos o conhecem em Santarém) estará lá para cumprimentar o Presidente da República e exibir, com orgulho, as divisas que lhe conferem a autoridade de sargento-mor, o posto cimeiro daquela categoria.
Entalados entre os oficiais e as praças, os sargentos saíram do anonimato, há perto de 20 anos, quando a lei passou a permitir que os militares se organizassem em associações socioprofissionais.
Desde então, quando se fala em contestação fardada, em cartas de protesto, petições e acções de rua contra a «degradação da condição militar», aparecem na linha da frente representados pela Associação Nacional de Sargentos (ANS).
De acordo com os especialistas, esta é a de maior coesão e mais organizada das associações militares. «A classe de sargentos, pela natureza da sua função, permite-se não ter tantas contradições internas, o que a leva a ser mais coesa», explica Luís Alves de Fraga, o coronel na reserva e docente universitário que, nos anos 80, introduziu o estudo da Sociologia Militar na Academia da Força Aérea. Entre o oficialado português, há mesmo quem arrisque dizer que se ocorresse outro 25 de Abril, esse seria desencadeado pelos sargentos e não pelos capitães.
Considerações à parte, a verdade é que os sargentos se empenharam nas revoluções dos últimos 120 anos. Não é por acaso que assinalam o 31 de Janeiro como Dia Nacional do Sargento. Trata-se de homenagear os camaradas que lideraram o levantamento republicano de 1891, no Porto. E no 5 de Outubro de 1910, foram eles que aguentaram a Rotunda, em Lisboa, empurrando para a frente o jovem oficial Machado dos Santos, depois do suicídio do almirante Carlos Cândido dos Reis (que liderava a revolta republicana).
Difícil será dizer se, aos 75 anos, o sargento-mor Passarinho se voltaria a meter numa dessas. É que das revoluções já teve a sua conta. Este mecânico de carros de combate marcou presença, na madrugada da Primavera de 1974, em que Salgueiro Maia, vindo de Santarém, marchou sobre Lisboa, ajudando a pôr fim a quase cinco décadas de ditadura. Sem o então primeiro-sargento na desempanagem, o histórico capitão podia não ter chegado ao Largo do Carmo, para obrigar Marcelo Caetano a render-se.
A partir daí (e isso depois de três comissões em África, durante a Guerra Colonial), Passarinho esteve em todas, do 11de Março ao 25 de Novembro. E alinhou sempre que Salgueiro Maia precisou de contar com o seu desembaraço.
MAIS SOFISTICADOS
Tradicionalmente, o sargento é o graduado que mais de perto lida com as praças. «Se o sargento não for um líder inteligente, que se sabe colocar entre o oficial de quem recebe as ordens e as praças a quem as transmite, a execução pode falhar redondamente», destaca Alves de Fraga. «Nos chamados comandos intermédios o bom desempenho da função fica a dever-se muito à colaboração dos sargentos», afirma o coronel, ele próprio filho e neto de sargentos da Armada.
Para perceber as mudanças das últimas décadas na classe ao longo das últimas décadas, basta ouvir o sargento-mor Gomes: o rótulo de «barriganas e bêbedos» já não cola. «Agora, a instrução é outra», salienta, endireitando as costas a fim de posar para a fotografia.
Com efeito, muitos dos actuais sargentos são licenciados. António Lima Coelho, presidente da ANS fala em «centenas». Não admira, a sofisticação técnica dos equipamentos militares tornou a formação muito mais exigente.
E a classe tem produzido exemplos de sofisticação técnica. E o caso do primeiro-sargento António José Rodrigues. Aos 44 anos, com um mestrado em Filologia Árabe e Ciências do Islão, é um dos maiores especialistas da NATO em questões islâmicas em ambiente bélico. Autor de vários livros, assina o guia de referência da Aliança para o mundo islâmico (Public Information in Arabic Countries), e é docente na Escola da NATO, em Oberammergau, na Alemanha. Ainda na semana passada, durante uma visita à Escola de Sargentos do Exército (nas Caldas da Rainha) foi o próprio ministro da Defesa, Augusto Santos Silva, quem destacou a centralidade dos sargentos na organização militar como categoria essencial à operacionalidade das FA. O ministro salientou também a importância de se investir numa formação «qualificada, moderna e integral».
ESCOLIOSES E HÉRNIAS
Lima Coelho fala, igualmente, do maior grau de capacidades e competências exigido presentemente a quem quer seguir a carreira das armas como sargento.
«Quando um jovem com o 12. ° vai ao balcão de recrutamento e é colocado perante as hipóteses de se candidatar ao curso de sargentos ou à Academia Militar (para oficiais), não terá dificuldade em escolher a segunda. O grau de exigência no acesso a uma e outra é muito semelhante», diz.
E, pegando na analogia da coluna vertebral, afirma que essa tem sido maltratada. Ironiza, ligando alguns dos problemas da classe com escolioses e hérnias discais. Lamenta, entre outros aspectos, que, no caso dos sargentos, a exigência não seja compensada, tanto em reconhecimento como a nível remuneratório. E dá exemplos: o salário bruto de um jovem segundo sargento é de 1 200 euros brutos e o de um sargento-mor, posto a que poucos chegam, de 1500. Para se passar de um a outro posto, é preciso fazer um percurso de três décadas.
Mas não reside apenas na remuneração o motivo pelo qual os sargentos se mobilizam e se colocam na linha da frente da contestação dos militares. O presidente da ANS fala, também, nas dificuldades de muitos para verem as suas licenciaturas reconhecidas. Exemplos disso são os enfermeiros e técnicos de diagnóstico e terapêutica integrados nos três ramos das FA. Há anos que reclamam a entrada na carreira de oficiais e já avançaram com uma acção administrativa contra o Ministério da Defesa, nos tribunais. Estão nesta situação cerca de 500 sargentos do quadro permanente no activo - um em cada 20.
Os problemas de classe são conjunturais e por muito que a situação nos quartéis tenha mudado desde que Passarinho acompanhou Salgueiro Maia, a essência da função do sargento mantém-se praticamente inalterada: a de correia de transmissão entre quem dá as ordens e quem as executa. É que, conclui Luís Alves de Fraga, «por trás de uma boa ordem bem executada, pode estar sempre um bom sargento».
FRANCISCO GALOPE in Visão
2 de Junho de 2010
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